sábado, 8 de março de 2014

O assumir-se negro

Durante muito tempo de escravidão, os negros trazidos para o Brasil tiveram sua cultura e raízes abafadas pelo modelo político-social vigente.  ”Abolida" a escravidão no Brasil, a classe detentora do poder, em vez de criar políticas de integração dos negros por meio de programas de escolarização e saúde, preferiu esquecê-los. Nessa nova aparente condição, embora não mais fossem escravos, o negro não conseguiu cidadania. Passou então a competir socialmente em condições da mais absoluta desigualdade. 
O processo de  escravização  quase eliminou os traços da identidade dos negros. E, se não bastasse,  logo  após a abolição, a pouca documentação  sobre o tráfico negreiro foi destruída por ordem do então ministro Rui Barbosa, que pretendia, “eliminar a escravidão (...) por honra à pátria e deveres fraternais de solidariedade para com a grande massa de cidadãos que, pela abolição do elemento servil, entraram na comunhão brasileira”. (Schwarcz & Reis, 1996: 81). Para os negros, essa crueldade foi ainda pior que a própria escravidão. O atual conhecimento sobre a cultura negra foi, em sua maior parte, transmitido oralmente, conforme destaca Colina (1982: 7): “nossa História/Estória foram mantidas boca-a-boca. E de fogueiras a bocas-de-fogão e mesas, perduram até hoje, questionando a verdade encapuzada da história estabelecida”.
Desse contexto, resulta, no Brasil atual, a grande importância da literatura negra, manifestação artística cujo surgimento, segundo Bernd (1988), está ligado à compreensão do conceito de negro, termo que pode nos remeter a duas realidades: “tanto (...) à ofensa e à humilhação, quanto” à “expressão de orgulho”. (Bernd, 1988: 96). Ainda segundo essa estudiosa, ”através da poesia, negro se liberta da imagem quase sempre estereotipada com que foi apresentado desde sua chegada ao Novo Mundo”.
O  aprofundamento de uma consciência negra para uma nação mestiça é, portanto,  fundamental. A expressão artística foi o meio que inúmeros poetas encontraram para combater e libertar seu povo do preconceito e integrá-los à sociedade. O discurso poético, então, é o espaço  de onde surgem  o conceito de negritude e a tomada de consciência desse negritude.  Resulta daí a necessidade de uma  poesia negra, que expressa a verdade de uma comunidade,  que fale de si próprio com orgulho e expressão assumida.
Fazendo de sua poesia uma arma, o poeta  Solano  Trindade  denunciou as mazelas sociais decorrentes do preconceito.  Ao longo da vida, ele foi vítima de vários tipos de preconceito por ser negro, pobre e nordestino. Com o objetivo de divulgar os intelectuais e artistas negros, fundou a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-brasileiro. Editou seu primeiro livro em 1944 (Poemas de uma vida simples), o segundo, em 1958 (Seis tempos de poesia) e o terceiro em 1961(Cantares ao meu povo).
Solano Trindade desenvolveu uma intensa atividade cultural voltada para o folclore e para a denúncia do racismo, prestando significativa contribuição à cultura nacional, quer pelas realizações, quer pela pesquisa dos fatos da cultura popular. A obra dele representa a expressão  artística de uma etnia socialmente marginalizada, injustiçada, mas que hoje enfrenta a tarefa histórica de reconstruir sua própria identidade para adaptar-se às exigências do mundo contemporâneo e resistir, desta vez, ao apagamento de culturas minoritárias em favor da cultura de base judaico-cristã, ocidental e capitalista.

Observe este belo exemplo de Solano Trindade:

SOU NEGRO 

A Dione Silva 

Sou Negro 
meus avós foram queimados 
pelo sol da África 
minh`alma recebeu o batismo dos tambores atabaques, gonguês e agogôs 
Contaram-me que meus avós 
vieram de Loanda 
como mercadoria de baixo preço plantaram cana pro senhor do engenho novo 
e fundaram o primeiro Maracatu. 
Depois meu avô brigou como um danado nas terras de Zumbi 
Era valente como quê 
Na capoeira ou na faca 
escreveu não leu 
o pau comeu 
Não foi um pai João 
humilde e manso 
Mesmo vovó não foi de brincadeira 
Na guerra dos Malês 
ela se destacou 
Na minh´alma ficou 
o samba 
o batuque 
o bamboleio 
e o desejo de libertação... 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina. In: Rosa Helena Blanco & Márcia Rios da Silva. (Org.). Estampa das Letras: literatura, lingüística e outras linguagens. Salvador: Quarteto, 2004.
CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. São Paulo: GRD, 1987.
COLINA, Paulo. Antologia contemporânea da poesia negra brasileira. São Paulo: Global, 1982
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Visibilidade e ocultação da diferença: imagem de negro na cultura brasileira. Belo Horizonte: PUC-Minas, 2001.
FRAGOSO, Frei Hugo. O etnocentrismo na primeira evangelização do Brasil. Convergência, 233, 199?.
FRIZOTTI, Heitor. O resgate da identidade negra. In: Antônio Aparecido da Silva (org). Existe um pensar teológico negro? São Paulo: Paulinas, 1998.
HISTÓRIA negra. parte 2. Disponível em: www.racablac.vilabol.uol.com.br./historiablac.htm
PEREIRA, Edimilson de Almeida & GOMES, Núbia Pereira de M. (2001). Ardis da imagem: exclusão étnica e violência nos discursos da cultura brasileira. Belo Horizonte: Maza/ EDPUCMG.
SCHWARCZ, Lilia Moritz & SOUZA REIS, Letícia Vidor de. (Org.). Negras imagens: ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil. São Paulo: EDUPS, 1996.

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